Ah se ele me dissesse.

O tal texto que eu tinha prometido há tempos..
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Quando cruzou com ele, na esquina da rua Direita com a praça do Patriarca, ela estremeceu, voltou-se. Seria Eliseu? Bem mais envelhecido, porém, pelos olhos negros, “olhos de louco”, todas as moças diziam curiosas, ela teve certeza. Os mesmos que a tinham fascinado. Nunca mais soubera de Eliseu desde que viera para São Paulo. Aliás, tinha vindo por causa dele, para fugir daquela rejeição que a marcara, tinha sido tão dolorida.
Seria mesmo ele? Esse homem não era alto, assim como Eliseu não era. Moreno, pele bem queimada, tinha sido o último moreno de sua vida, depois daquele não, passada a fase de restauro do coração, ela se apaixonou apenas por loiros.
Ele estava parado, como que indeciso, olhando para um papel e pesquisando a rua. Buscava um endereço, uma loja, o quê? Era a ocasião de se aproximar e oferecer ajuda, afinal, ela conhecia o centro da cidade como ninguém.
Manicure, há muitos anos fazia pés e mãos em muitos escritórios. Se fosse ele, certamente a reconheceria. Qual seria a reação? Ficaria feliz, ou ao menos contente? Ou recusaria a ajuda, com medo de um golpe, um conto-do-vigário? A cidade tem dessas coisas.
E se ele dissesse: você, outra vez em minha vida?
E se me abraçasse fortemente e dissesse: ah, se soubesse como fui bobo, não vi quanto você me amava! Como estraguei minha vida!
E se ele dissesse: me perdoe, eu era muito jovem, pouco mais que adolescente, tinha a cabeça no ar, na hora não vi o que você significava para mim?
E se ele dissesse: ah, você nunca vai ter ideia de quantas noites passei em claro, arrependido daquele não, naquele encontro, depois da aula de inglês, debaixo das árvores em frente do cinema?
E se ele dissesse: passei estes anos todos pensando em como seria a nossa vida juntos?
E se ele dissesse: você desapareceu da cidade, passei a vida sem ter notícias de você, do que fazia, andei te procurando, para tentar negar aquele não?
E se ele dissesse: há uma forma de apagar aquela noite que me marcou, porque quando olhei na calçada, atrás de você passava a Marília, a menina mais linda da cidade, ela me olhou, me piscou, achei que poderia ser minha?
E se ele dissesse: Marília começou a me namorar, mas foi só por um mês, logo se apaixonou por outro, mas a vida dela foi breve, sabia? Morreu aos 21 anos, nem tinha começado a viver, sua morte foi um mistério.
E se ele dissesse: por que não me procurou? Por que não tentou me reconquistar? Por que se abalou com o não dito assim tão infantilmente? Por que não pensou que o jogo da sedução era esse? Negar para provocar, testar.
E se ele dissesse: você está tão bem, nem mostra a idade que tem, e temos a mesma idade, só que, olhe para mim, a que fui reduzido, eu que era tão bonito, disposto, me cuidava tanto?
E se ele dissesse: hoje não vinha para a cidade, é longe de onde moro, tomo quatro conduções, mas vim?
Então isso deve significar alguma coisa, faz anos que penso em vir para resolver este problema, e hoje saí cedo, aqui estou, você aí está, a carta está pronta, tenho escrito e reescrito. Tem de haver um sentido nisso.
E se ele dissesse: jamais a reconheceria nessa esquina, você engordou, a suas mãos tremem, as rugas tomaram seu rosto, onde estão aquelas madeixas loiras, nós comentávamos seus cabelos, agora o vestido de chita é esgarçado. Você que só usava sedas. Está mal de vida?
E se ele dissesse: por que pergunta de mim? Acha que posso reconstituir em minutos toda a vida, o que passei, o que quis fazer, o que não fiz e nunca mais vou fazer, o que sonhei e por que não sonho mais?
E se ele dissesse: por que não me pergunta o que estou fazendo aqui com esse papel na mão?
E se ele dissesse: não, não pense que a vida or ser refeita, ela já foi vivida, cada um do seu jeito, a seu modo, boa ou ruim? Não quero pensar naquela noite, nem me lembro que encontro foi esse, o que disse, nem sei do que você está falando, nem sei se você é quem diz ser, nem você sabe se sou eu quem você pensa que sou?
E se ele dissesse: na sua idade, vir abordar um homem num dia abafado de calor, neste tumulto da Rua Direita? Qual é? Você é louca? Histérica? Uma mulher desesperada? Quem é você?
Foram alguns segundos apenas, ela criou coragem, colocou-se diante do homem:
-Eliseu?
-Sim. Quem é você?
-Fátima. Lembra-se? Somos da mesma cidade.
-Somos?
-Fomos. Vim embora há muito tempo.
-E o que quer?
-Conversar. Estudamos juntos, fizemos o Clássico. Fui apaixonada por você!
-Apaixonada? Puxa, isso é que é ser objetiva. Foi? Nunca me disse?
-Disse.
-Não me lembro. Não lembro mais a maioria das coisas.
-Vi você com um papel na mão. Procura um endereço?
-Não, é uma carta!
-Quer ir ao Correio?
-Não! É uma carta de despedida que vai no meu bolso. Estava indo ao Viaduto do CHá. Para me atirar dele.
-Por que não vem à Leiteria Americana conversar, tomar um chocolate comigo?
-Está louca? Conversar? Chocolate, neste calor? A Leiteria ainda existe? Fui tanto ali. Ao menos, se fosse rum com Coca-Cola, uma bebida para nossa idade...
-Vem?

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Percebe quantas coisas deixamos pra trás por medo de tentar, arriscar e dizer tudo o que se passa na nossa cabeça?
SOMOS LIVRES
. Melhor não resistir e se entregar. =P

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